sábado, 31 de dezembro de 2022

MANOEL DE BARROS - UM VERDADEIRO POETA


 

O filósofo catalão Rafael Argullol define a poesia como “a destilação do silêncio”. Em um dos versos das Memórias inventadas, o poeta Manoel de Barros confirma este elo essencial entre a escrita poética, o desaparecimento e a mudez: “Uso a palavra para compor meus silêncios.” Esse apego ao recolhimento é, no caso de Manoel, uma estratégia que cobiça o nada. Uma arte da meditação. Está escrito em O guardador de Águas: “Não tenho bens de acontecimentos./ O que não sei fazer desconto nas palavras.”


O objetivo da poesia de Manoel de Barros não é explicar, mas “desexplicar”. Ela se desenrola além da razão e de seus bons argumentos. Por isso, provavelmente, é uma poesia que se apega à infância, momento da vida em que todos os sentidos ainda estão por se fazer. A criança tem a liberdade para cultivar uma visão torta das coisas. Seu olhar é sinuoso, e não reto. A razão — que nos fascina desde o Iluminismo — ainda é uma quimera. Nesse corajoso retorno à infância, Manoel trabalha com inversões, deslocamentos, deformações — “brincadeiras” semelhantes as dos primeiros anos de vida. Pode dizer coisas como: “O córrego ficava à beira/ de um menino…” ou “luava um pássaro”. É toda uma realidade que se inverte, libertando-se das amarras do bom senso. Não só dele, mas do valor solene e definitivo que os adultos, em geral, atribuem às palavras.


O poeta Manoel de Barros não blefava, não mentia, ao contrário, levava a encarar a difícil verdade. A poesia de Manoel é feita de restos, de sobras, de dejetos. Como ele diz em um poema: de “inutensílios”. É uma poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se confundem com as imagens. Ela confirma, assim, o caráter “inútil” — isto é, não pragmático, indiferente aos resultados — que a define. Como ele mesmo diz no Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave: “Passei anos me procurando por lugares nenhuns./ Até que não me achei — e fui salvo.”


Estranha salvação promovida não por um encontro, mas por um desencontro. Barros elogia também os defeitos, os desvios e o desprezível. De seu personagem Bernardo, ele diz que “desregula a natureza”.


Está dito no Livro Sobre Nada: “A sensatez me absurda.” Por isso, talvez, alguns intelectuais sisudos, inseguros, dele se afastem e até neguem sua grandeza. Nada disso o importunava. Dizia Manoel ter aprendido com o pintor boliviano Rômulo Quiroga que a força de um artista não vem de seus sucessos, mas de suas derrotas. É ali onde a arte falha — em pleno silêncio aterrador — que a poesia nasce. Quando pensa em suas palavras, perde o medo de errar. Mesmo com os cabelos brancos, Manoel ainda vivia uma infância na qual “não havia limites para ser”.


Preferia as ciências “que analfabetam”. Orgulhava-se, também, de seu senso apurado “de irresponsabilidades”. No Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, ele escreve: “Meu fado é o de não saber quase tudo.” Toma uma posição oposta a dos poetas sabichões, para quem a contradição é intolerável. Sabia, ao contrário, que a realidade é feita de lados divergentes. De difíceis paradoxos. É uma esfera que, em seu centro, sustenta a ignorância. Em Menino do Mato, ele diz: “Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais.” Sua poesia não está só além dos significados: ela os desmonta. Aquele homem sereno não tinha medo de enlouquecer. Ao contrário: sabia que, sem uma dose de desrazão, não se consegue fazer arte. Em O livro das Ignorãças ele afirma: “No descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo.”


O apego ao silêncio era uma forma que Manoel encontrava para ir além das palavras. Repetia um pouco Clarice Lispector, que escrevia para chegar “atrás de detrás dos pensamentos”. Ambos foram desbravadores, e isso os envolveu no manto da desconfiança. Na verdade: dá medo. Sua escrita errante e tortuosa dele se alimenta. “Sou mais a palavra com febre”, escreve nos Arranjos para Assobio. Também não temeu a sujeira — que, aliás, desde as primeiras fraldas, define o humano: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”, recomenda em Matéria de Poesia.


Por tudo isso, o encontro com a poesia de Manoel de Barros promovido por esta antologia se torna, ao mesmo tempo, um desencontro. O leitor se desencontra consigo mesmo e com tudo o que aprendeu: eis a poesia. O leitor tropeça no desconhecido e, ao se mirar no espelho das palavras, se desconhece: a poesia de novo. Manoel nunca temeu afirmar que o nome empobrece a imagem. Que a palavra a diminui e prende. Ainda assim, a palavra é tudo o que um poeta tem. Aceitando seu destino, escreveu: “Com esses exercícios os nossos/ desconhecimentos aumentaram bem."

 

Adaptado do livro: Meu Quintal é Maior que o Mundo de Manoel de Barros

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - 56 ANOS DEPOIS

 

"Sociedade do espetáculo": esta expressão já está em voga, especialmente ao se falar de televisão. No Brasil, parece se impor mais do que em outros lugares. Poucos, porém, sabem que, na origem, este era o título de um livro de Guy Debord. Lançado na França em 1967, A Sociedade do Espetáculo tornou-se inicialmente livro de culto da ala mais extremista do Maio de 68, em Paris; tornou-se um clássico em muitos países. Em um prefácio de 1982, o autor sustentava com orgulho que o seu livro não necessitava de nenhuma correção.O "espetáculo" de que fala Debord vai muito além da onipresença dos meios de comunicação de massa, que representam somente o seu aspecto mais visível e mais superficial. Em 221 brilhantes teses de concisão aforística e com múltiplas alusões ocultas a autores conhecidos, Debord explica que o espetáculo é uma forma de sociedade em que a vida real é pobre e fragmentária, e os indivíduos são obrigados a contemplar e a consumir passivamente as imagens de tudo o que lhes falta em sua existência real.


Têm de olhar para outros (estrelas, homens políticos...) que vivem em seu lugar. A realidade torna-se uma imagem, e as imagens tornam-se realidade; a unidade que falta à vida, recupera-se no plano da imagem. Enquanto a primeira fase do domínio da economia sobre a vida caracterizava-se pela notória degradação do ser em ter, no espetáculo chegou-se ao reinado soberano do aparecer. As relações entre os homens já não são mediadas apenas pelas coisas, como no fetichismo da mercadoria de que Marx falou, mas diretamente pelas imagens. Para Debord, no entanto, a imagem não obedece a uma lógica própria, como pensam, ao contrário, os pós-modernos "a la Baudrillard", que saquearam amplamente Debord.


A imagem é uma abstração do real, e o seu predomínio, isto é, o espetáculo, significa um "tornar-se abstrato" do mundo. A abstração generalizada, porém, é uma consequência da sociedade capitalista da mercadoria, da qual o espetáculo é a forma mais desenvolvida. A mercadoria se baseia no valor de troca, em que todas as qualidades concretas do objeto são anuladas em favor da quantidade abstrata de dinheiro que este representa. No espetáculo, a economia, de meio que era, transformou-se em fim, a que os homens submetem-se totalmente, e a alienação social alcançou o seu ápice: o espetáculo é uma verdadeira religião terrena e material, em que o homem se crê governado por algo que, na realidade, ele próprio criou.


Nessa base, Debord condena toda a sociedade existente, não somente fraquezas individuais e imperfeições. Em 1967, Debord distinguia dois tipos de espetáculo. O "difundido" (o tipo ocidental, "democrático") caracterizava-se pela abundância de mercadorias e por uma aparente liberdade de escolha. No espetáculo "concentrado", ou seja, nos regimes totalitários de toda a espécie, a identificação mágica com a ideologia no poder era imposta a todos para suprir a falta de um real desenvolvimento econômico. Toda a forma de poder espetacular justificava-se denunciando a outra; e nenhum sistema, além destes dois, devia ser imaginável.


Debord, portanto, reconheceu na antiga e extinta URSS, nada menos do que 25 anos antes de seu fim, uma forma subalterna – e destinada, enfim, a sucumbir - da sociedade da mercadoria. Mas, por um longo período, enquanto existia um proletariado inquieto, o comunismo de Estado desempenhou uma função essencial para o espetáculo ocidental: a de assegurar que os rebeldes potenciais se identificassem com a mera imagem da revolução, delegando a ação real aos Estados e aos partidos comunistas totalmente cúmplices do espetáculo ocidental; ou, então, a pressupostos revolucionários muito distantes, no Terceiro Mundo.




Debord anunciou, no entanto, o aparecimento de um movimento de contestação de tipo novo: retomando o conteúdo liberatório da arte moderna, teria como programa a revolução da vida cotidiana, a realização dos desejos oprimidos, a recusa dos partidos, dos sindicatos e de todas as outras formas de luta alienadas e hierárquicas, a abolição do dinheiro, do Estado, do trabalho e da mercadoria. Por isto, Debord sempre considerou o conteúdo profundo de 1968 como uma confirmação de suas ideias.

Teve, porém, de admitir, em Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo (1988), que o domínio espetacular conseguiu se aperfeiçoar e vencer todos os seus adversários; de modo que agora é a sua própria dinâmica, a sua desenfreada loucura econômica a arrastá-lo em direção à irracionalidade total e à ruína. Os dois tipos anteriores de espetáculo deram lugar, no mundo todo, a um único tipo: o "integrado". Sob a máscara da democracia, este remodelou totalmente a sociedade segundo a própria imagem, pretendendo que nenhuma alternativa seja sequer concebível. Nunca o poder foi mais perfeito, pois consegue falsificar tudo, desde a cerveja, o pensamento e até os próprios revolucionários. Ninguém pode verificar nada pessoalmente. Ao contrário, temos de confiar em imagens, e, como senão bastasse, imagens que outros escolheram. Para os donos da sociedade, o espetáculo integrado é muito mais conveniente do que os velhos totalitarismos. A América Latina sabe algo a respeito. Mas Debord (1931-1994) não é apenas um dos poucos autores de inspiração marxista que hoje podem dar uma contribuição válida para a análise do capitalismo globalizado e pós-moderno. Ele também fascina por sua vida singular, sem compromissos e conforme as suas teorias.


A busca da aventura e da vida "verdadeira" esteve na base de sua vida pessoal - da qual a sua autobiografia Panegírico e os seus filmes falam -, assim como de sua teoria. Levou uma existência intencionalmente "maldita", às margens da sociedade, sem um trabalho reconhecido, sem nenhum contato com as instituições, sem nunca ter frequentado uma universidade, concedido uma entrevista ou participado de um congresso e, no entanto, conseguiu fazer com que fosse ouvido. Levou adiante a sua batalha contra a sociedade espetacular exclusivamente com os meios que ele próprio criou para si: em primeiro lugar, com a Internacional Situacionista, uma pequena organização que existiu entre 1957 e 1972 e que se originou da decomposição do surrealismo parisiense e de outras experiências artísticas.


Com a revista homônima e novos meios de agitação (quadrinhos, organização de escândalos), os situacionistas souberam prefigurar, muito melhor do que a esquerda "política", as novas linhas de conflito na sociedade "da abundância". Entre outras coisas, criticavam impiedosamente a nova arquitetura, o vazio e o tédio do pós-guerra. Com poucas intervenções miradas, os situacionistas fizeram com que ideias subversivas - que, por volta de 1960, eram compartilhadas por um punhado de pessoas - se tornassem, em 1968 e posteriormente, um fator histórico de primeira ordem. Os situacionistas, e particularmente Debord, distinguem-se pelo estilo inconfundível, e não somente no plano literário. Era o resultado da mistura entre um conteúdo radical - que remetia, entre outros, aos dadaístas, aos anárquicos e à vida popular parisiense - e um tom sofisticado e aristocrático, com muitas referências à cultura clássica francesa.


Este estilo, assim como a sua verve polêmica, mesmo para com todos os supostos contestadores (esquerda oficial, artistas "engajados"...), sua inacessibilidade e a sua transgressividade nas formas, logo os cercou de um ódio significativo, mas sobretudo de uma aura de mistério. Que ainda vive, 30 anos depois: com efeito, ainda se publicam textos dos situacionistas e sobre eles, embora amiúde procurem fazê-los passar exclusivamente por última "vanguarda cultural". Na França, ao contrário, só querem enxergar em Debord o escritor. Ainda hoje não querem perdoá-lo por ter escrito A Sociedade do Espetáculo.

 


 

HÁBITOS – UM MECANISMO NEURAL E PSICOLÓGICO COMPLEXO E DIFÍCIL DE MUDAR

HÁBITO – UM MECANISMO NEURAL COMPLEXO DE MUDAR by Heitor Jorge Lau             É uma verdade quase inquestionável que, em algum moment...