terça-feira, 8 de outubro de 2024

UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A MORTE


Através da história do homem, a ideia da morte propõe o mistério eterno que é o centro de alguns dos mais importantes sistemas de pensamentos filosóficos e religiosos da humanidade. Por exemplo, a Cristandade, onde o significado da vida é consumado em seu termo e o existencialismo e sua preocupação impressionante com o temor e a morte. Este modo de ver tem enormes consequências práticas em todas as esferas da vida, econômica e política, bem como moral e religiosa.

Uma das mais distintas características do homem, em contraste com as outras espécies, é a sua capacidade de compreender o conceito de uma futura e inevitável morte. Em Química e Física, um fato é quase sempre determinado pelos eventos que o precederam. No ser humano, o comportamento presente depende não somente do passado, mas, da orientação para com acontecimentos futuros. De fato, o que uma pessoa procura vir a ser pode, algumas vezes, decidir ao que ela dá atenção em seu passado. O passado é uma imagem que muda com a imagem que temos de nós mesmos no presente.

A morte é algo que acontece a cada um, óbvio. Mesmo antes de sua chegada, ela é uma presença ausente. Muitos afirmam que o temor da morte é uma reação universal e que ninguém está livre dela. Quando paramos para considerar o assunto, a noção da singularidade e da individualidade de cada indivíduo adquire significado completo somente ao conceber que a morte é certa. E, é neste mesmo encontro com a morte que cada um descobre sua ânsia pela imortalidade.

Freud postulou a presença de um inconsciente desejo da morte nas pessoas, que ele ligou com certas tendências para a autodestruição. Melanie Klein acreditava que o medo da morte está na raiz de todas as ideias persecutórias e, por isso indiretamente, de toda a ansiedade. Paul Tillich, o teólogo, cuja influência se fizeram sentir na psiquiatria americana, fundamentou a sua teoria da ansiedade no postulado ontológico de que o homem é finito, sujeito ao não-ser. A insegurança bem pode ser um símbolo da morte. Qualquer perda pode representar uma perda total. Jung percebeu a segunda metade da vida como estando dominada pelas atitudes do indivíduo para com a morte. Em síntese, é possível observar um crescente reconhecimento da relação entre a doença mental de alguém e sua filosofia de vida e de morte.

Temas e fantasias sobre a morte são proeminentes em psicopatologia. Exemplos existem de que ideias sobre a morte são periódicas em alguns pacientes neuróticos e nas alucinações de muitos indivíduos psicóticos. Há o estupor do paciente catatônico, algumas vezes comparado a um estado de morte, e as ilusões de imortalidade em certos esquizofrênicos. A negação esquizofrênica da realidade pode funcionar, em certos casos, como um obstáculo mágico se não como anulação da possibilidade a morte. Se viver leva inevitavelmente a morte então a morte pode ser desviada pelo não viver. Também, um grupo de psicanalistas acreditava que uma das principais razões pela qual as medidas de choque produziam efeitos positivos nos pacientes era que estes tratamentos forneciam um tipo de experiência fantasista de morte-e-renascimento. É relevante notar, contudo, que mesmo quando a ansiedade sobre a morte é discutida na literatura, é ela com frequência interpretada essencialmente como um fenômeno derivado ou secundário, frequentemente como um aspecto mais facilmente suportável do temor à castração, ou como a ansiedade de separação ou perda do objeto amado.

Outras investigações de atitudes para com a morte podem enriquecer e aprofundar a compreensão das reações de boa ou má adaptação ao estresse e da teoria da personalidade. A adaptação das pessoas mais velhas à ideia da morte, por exemplo, pode ser um aspecto crucial do processo de envelhecimento. O estudo das atitudes para com a morte na pessoa seriamente doente e moribunda, uma experiência in natura, pode prover novos insights das maneiras com que diferentes indivíduos enfrentam a ameaça. Numa perspectiva mais ampla, não apenas a psicologia, mas a cultura ocidental, na presença da morte, tende a correr, esconder-se, e buscar refúgio em uma linguagem eufemística, no desenvolvimento de uma indústria que tem, como interesse maior, a criação de maiores qualidades naturais na morte. A preocupação com a morte tem sido relegada ao território proibido até aqui ocupado por moléstias terminais.

Com o enfraquecimento das crenças relativas à pecaminosidade do corpo e a certeza de uma vida após a morte, parece haver um concomitante decréscimo na capacidade das pessoas de contemplar ou discutir a morte natural. Não obstante, as investidas de duas guerras mundiais, junto com a herança de um holocausto nuclear potencial, têm ajudado  a empurrar a temporalidade da vida cada vez mais para o primeiro plano. O movimento existencialista tem sido particularmente conspícuo em redescobrir a morte como um tema filosófico e um problema no século XXI. Num certo sentido, a história da filosofia existencial, em suas maiores fases, é uma exegese da experiência humana da morte. A imagem do homem que surge é de uma criatura limitada pelo tempo.

O existencialismo de nosso século, expresso nas filosofias de Simmel, Sheler, Jaspers e Heidegger colocou a experiência da morte perto do centro de suas análises da condição humana. Tem acentuado a morte como uma parte constitutiva, antes que o mero fim da vida, e salientou a ideia que somente pela integração do conceito de morte dentro do eu torna-se possível uma autêntica e genuína existência. O preço de negar a morte é a ansiedade indefinida, a autoalienação. Para compreender-se completamente, o homem tem de enfrentar a morte, tornar-se cônscio da morte pessoal. O existencialismo não é, certamente uma técnica psicoterapêutica e não tem pretensões nesta direção.

Na resposta à pergunta "O que a morte significa para você?" dois pontos de vista emergem. Um vê a morte numa veia filosófica, como o fim natural do processo vital. O outro é de natureza religiosa, percebendo a morte como a dissolução da vida corporal e, na realidade, o começo de uma nova vida. Estas óticas, num certo sentido, amplamente espelha a interpretação da morte na história do pensamento ocidental. Destes dois polos opostos, podem se derivar duas éticas contrastantes. De um lado, a atitude para com a morte é a aceitação estoica ou cética do inevitável, ou mesmo a repressão do pensamento de morte pela vida; do outro, a glorificação idealista da morte é a que proporciona significado a vida, ou é a pré-condição para a verdadeira vida do homem. Esta descoberta põe em destaque a profunda contradição que existe no pensamento sobre o problema da morte. A tradição pressupõe que o homem termina com a morte e que, ao mesmo tempo, é capaz de continuar, de algum outro sentido, além da morte. A morte é vista, de um lado, como uma parede, o desastre pessoal extremo, e o suicídio como o ato de uma mente doentia; de outro lado, a morte é considerada como uma porta de entrada, um ponto no tempo no caminho da eternidade.

O grau de perturbação mental per se nos pacientes, aparentemente, possui pequeno efeito sobre suas atitudes globais para com a morte. Nem a neurose, nem a psicose produzem atitudes para com a morte que não possam ser encontradas em sujeitos normais. O distúrbio emocional aparentemente serve para trazer atitudes específicas mais claramente para o primeiro plano. Estes resultados reforçam as descobertas de Bromberg e Schilder. Incidentalmente, poucas pessoas normais visualizam sua própria morte em decorrência de um acidente. Isto se opõe às descobertas de que uma boa proporção dos pacientes mentalmente enfermos visualiza sua morte por efeito da "pane num avião", "por atropelamento”, "de assassinato" ...

Quando solicitada a expressar uma preferência quanto à "maneira, lugar e tempo da morte, uma maioria esmagadora gostaria de morrer rapidamente e com pouco sofrimento - pacificamente, dormindo. Muitos queriam ter tempo suficiente para que pudessem fazer as despedidas da família e amigos. "Em casa" e na "cama" são especificamente mencionados como locais favoritos para morrer. Há, naturalmente, idiossincrasias pessoais - "num jardim", "contemplando o oceano", "numa rede em dia de primavera".

Com referência ao tempo da morte, as pessoas desejam morrer à noite, porque "significa menos problemas para todos os interessados", "pouco rebuliço". A escolha da noite, afora o pacífico final da vida considerado, que ela sugere, tem muita riqueza de sugestão simbólica. Homero, na Ilíada, alude ao sono (hypnos) e à morte (thanatos) como irmãos gêmeos, e muitas das preces religiosas entrelaçam as ideias de sono e morte. Os judeus ortodoxos, por exemplo, ao despertar pela manhã agradecem a Deus por tê-los restaurado para a vida novamente.

A pessoa religiosa, quando comparada com o indivíduo não religioso, é pessoalmente mais temerosa da morte. O indivíduo não religioso teme a morte porque a família pode não estar prevenida para tal ou porque deseja completar certas coisas ainda não vividas. A ênfase está no temor da descontinuidade da vida na Terra - o que está sendo deixado para trás - em vez de naquilo que poderá vir a acontecer depois da morte. A ênfase para a pessoa religiosa é dupla. Preocupa-se com assuntos post-mortem - ''posso ir para o inferno", "tenho pecados para expiar ainda” - bem como com a cessação das presentes experiências terrestres. Os dados indicam que mesmo a crença de ir para o paraíso não é um antídoto suficiente para pôr fim ao medo pessoal da morte de algumas pessoas religiosas. Esta constatação, juntamente com o forte temor da morte expresso em anos passados por um número substancial de indivíduos inclinados à religiosidade, pode refletir um uso defensivo da religião por parte de algumas pessoas. De modo correspondente, a pessoa religiosa sustenta uma orientação mais significativamente negativa para com os anos mais avançados da vida do que o faz a correspondente pessoa não religiosa.

A maturidade humana traz consigo um reconhecimento de limite, que é um notável avanço no autoconhecimento. De certa maneira, a disposição para morrer aparece como uma necessária condição de vida. Ninguém está totalmente livre em qualquer ação enquanto for comandado por uma inescapável vontade de viver. Neste contexto, os riscos diários da vida, por exemplo dirigir na cidade, fazer uma viagem aérea, perder a vigilância ao dormir, tornam-se formas de quase extravagante insensatez. A vida não nos pertence genuinamente até que possamos renunciar a ela. Montaigne penetrantemente observou que "somente o homem que não mais teme a morte deixou de ser um e cravo”.

Para concluir: o nascimento de um homem é um evento incontrolável na sua vida, mas a maneira de sua partida da vida guarda uma definida relação com sua filosofia de vida e morte. Está enganado aquele que considerar a morte como um acontecimento puramente biológico. A vida não é verdadeiramente compreendida nem completamente vivida a não ser que a ideia de morte seja encarada com honestidade. Há uma premente necessidade de informação mais fidedigna e sistemática de estudo controlado na área. Esta é uma área em que as formulações teóricas não têm deixado atrás de si um corpo acumulativo de dados descritivos e empíricos. A pesquisa sobre o significado da morte e o ato de morrer podem realçar a compreensão do comportamento do indivíduo e fornecer uma porta de entrada complementar para uma análise das culturas.

Alegria, amor e felicidade provêm indícios igualmente válidos para a realidade e o ser. Como Gardner Murphy perspicazmente salientou, está longe de estar estabelecido que todo enfrentamento da morte represente necessariamente proveito para a saúde mental.


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