A Bíblia narra uma história criada na tradição judaica e compartilhada pelos dois filhos da fé de Abraão: Cristianismo e Judaísmo. É a narrativa do primeiro pecado. Deus coloca Adão no centro de um jardim maravilhoso. Adão é um ser único, pois, como ensinam os especialistas na Torá, a humanidade inteira descende dele e isso institui a fraternidade universal. Somos filhos do mesmo Pai: ninguém é estrangeiro ou estranho neste planeta. Deus se apresenta nos capítulos iniciais da criação como dotado dos atributos da misericórdia e da justiça. A tradição interpretativa judaica (Midrash) identifica esses dois atributos como importantes: se o mundo for criado só com misericórdia, haverá muitos pecadores; se for criado exclusivamente com justiça, ninguém poderá subsistir. Assim, o mundo é elaborado com misericórdia e justiça. Em outras palavras: se Deus for muito compreensivo com sua criação, cada um fará o que bem entende e se distanciará do Criador; se for exclusivamente justo, ou seja, punir quem erra de acordo com a Lei, quem poderia sobreviver ao rigor do olhar divino? Assim, o mundo foi gerado com o atributo divino da misericórdia (Midat Harachamim) e com o da justiça (Midat Hadin).
É uma forma de equilíbrio ditado por Deus. A primeira norma surge antes da criação de Eva: não comer da árvore da vida. Liberdade absoluta: tudo poderia ser utilizado, menos o fruto da árvore do saber, do bem e do mal. A primeira regra da criação já veio com o primeiro código penal: “No dia em que comeres dela, morrerás” (Gênesis 2:17). Criar punição antes da infração indica que já se sabe da dificuldade na observação da regra. Quando estabeleço o que acontece com quem não obedecer, já reconheço que obedecer é uma opção e que é humano enfrentar a regra. É interessante imaginar que uma norma seduz para a possibilidade da infração. Diga-se a uma criança que pode brincar com TUDO naquele espaço MENOS com o brinquedo vermelho que está sobre a cadeira. Não é necessário ser um grande psicólogo ou pedagogo para imaginar que será exatamente o brinquedo proibido o alvo maior do interesse dela. O mais lógico é imaginar que, exatamente por causa da proibição, o brinquedo interditado será o único desejado, pois o interdito ganhou uma aura de interesse. Aquele brinquedo deve conter algo muito especial e todos os outros são monótonos. De alguma forma, o erro, o pecado, a infração, são criados pela norma que os institui. A gramática estabelece à medida que torna alguém mau usuário da norma culta. Quem escreve uma gramática está criando os incultos da língua. A regra é a mãe do infrator. Talvez isso explique que a justiça de Deus ande de mãos dadas com sua misericórdia. É uma percepção sábia, pois estabelece uma norma como meta e já prevê a inevitável infração. Seria tentador imaginar que a culpa do pecado esteja em Deus. Ele determinou algo que seria impossível de evitar, como é impossível à criança frear a vontade do brinquedo vermelho sobre a cadeira. Mais forte seria imaginar que a norma contém um secreto desejo de infração.
Na cabeça do legislador, estaria uma vontade de exaltar a regra e sua sabedoria, pois pela transgressão, ficariam evidentes a reta intenção e a justiça do autor da regra. O pecador faz a justiça de Deus brilhar, bem como torna necessária sua misericórdia. Há uma questão no primeiro pecado que é muito interessante. Deus diz que não se pode comer do fruto da Árvore da Vida. A maçã, como consagrou a tradição, era interditada ao paladar humano. Porém, quando a serpente tentou, insinuou o contrário; Eva argumentou que não poderia nem comer e “nem tocar no fruto” (Gênesis 3:3). Eva exagera a regra e a muda. Eva acrescenta mais interdição. O reforço imaginativo talvez evidencie o quanto de sedutor havia no não. A tentação é iniciada pela serpente, mais astuta do que qualquer animal. Parece que a inteligência é associada ao pecado. Posteriormente, essa serpente seria identificada com o demônio, mas isso é mais cristão do que judaico, pois o demônio tem maior autonomia e força no Cristianismo do que no Judaísmo. Inteligência permite ter consciência. A serpente a possui antes do episódio da queda. Consciência só existirá para Adão e Eva após o pecado. Como personagens, Adão e Eva são totalmente rasos e desinteressantes quando estão em plena comunhão com Deus. O casal só nota a nudez depois de ter comido a fruta e cria um traje de folhas de figo. Inteligência, consciência e, agora, moral: estava ocorrendo uma segunda criação do ser humano. Na primeira criação, surgira um ser sem doenças, perfeito e integrado ao Criador. A segunda criação é o surgimento do mundo como o conhecemos: infrator, culpado, com desvios incessantes. Deus criou Adão e Eva e, com o pecado, Adão e Eva nos criaram. De fato, somos descendentes do primeiro casal, mas os filhos só nasceram fora do Paraíso. Somos nós, melancólicos de uma ordem da qual só ouvimos falar: o mundo sem erro e sem pecados. O grande Maimônides havia advertido que o livre-arbítrio era respeitado por Deus (Os oito capítulos). Fomos criados com a capacidade de optar entre o Bem e o Mal. Eva disse para a serpente que sabia da norma. A serpente disse que ela não morreria, mas viveria eternamente. É uma pergunta colossal e um drama cósmico: por que escolhemos, conscientemente, o que sabemos ser errado? Talvez essa seja a pergunta mais importante de todas. Vai dos pequenos dramas cotidianos às questões cósmicas. Por que optamos pelo errado? Eva demonstra, imediatamente, a vontade do bem. Responde com a regra que ela sabe correta. Seduzida para agir mal, a primeira mãe responde bem. Eva é nosso modelo humano. Quase sempre não precisamos que alguém nos diga o certo. Agimos errado com consciência do erro. Sabemos o dano que causa a fritura. Temos clara profecia sobre o dia seguinte ao optar pela bebida em excesso. Sabemos que o dinheiro gasto daquele jeito fará falta. Eva enveredou por uma decisão crucial, como nós enveredamos diariamente pelos pequenos desastres. A resposta mais óbvia é que o erro nasce do prazer imediato que se antecipa. Engordar está no futuro e o brigadeiro sedutor e tenro está no presente. Poupança é árdua e o gasto imediato é uma maravilha. O dia está pela frente, frio, e a cama está quente e envolvente agora.
Errar seria abandonar a virtude do futuro pelo prazer presente. Errar seria colocar satisfação no aqui e agora e evitar o investimento de longo prazo. Errar seria apenas uma estratégia temporal? O bem X está no ponto mais próximo e palpável e o bem Y está longínquo; então… opto pelo X. Olhando tecnicamente, o erro seria apenas um equívoco temporal, ou um choque entre uma noção de dever de longo prazo contra um ganho imediato. Curiosamente, há um sentimento generalizado: as pessoas muito “certinhas”, aquelas que sempre apostam no adequado, que poupam, que comem alimentos corretos, que nunca se atrasam, que dormem nas horas exatas e na quantidade prescrita pela Organização Mundial de Saúde seriam… chatas. Há mais: seriam pouco aptas ao inovador, ao inesperado. Esses apóstolos da virtude seriam burocráticos e fadados ao fracasso no campo do empreendedorismo. A Bíblia foi escrita antes de o empreendedorismo virar a Teologia da nossa época. A Bíblia foi escrita antes do próprio capitalismo. O defeito da escolha de Adão e Eva é mais vasto. Não diz respeito a um prazer imediato e inovador, mas a uma cegueira. O primeiro casal desejou ser Criador, almejou elevar a criatura. Isso é, basicamente, idolatria. Em um sentido estrito, a idolatria é o culto de estátuas de deuses falsos. No sentido mais amplo, é a substituição do Criador pela criatura. Adão e Eva desejaram “ser como Deus”, a promessa que a serpente fez. O primeiro erro é uma forma de idolatria, dentro da qual está inserida a desobediência. Não era fome ou um prazer imediato. Não era o prazer juvenil da revolta. Era uma ambição de superioridade impossível de ser contemplada. O segundo erro é mais sutil. Adão e Eva comeram da árvore do conhecimento, cujo fruto pronto e maduro se apresentava. O conhecimento, na tradição judaica, é uma obrigação, um dever imposto aos homens.
Mas o conhecimento é fruto do esforço, do contínuo aperfeiçoamento, da luta pelo esclarecimento. Tomar o conhecimento pronto e maduro não é o verdadeiro conhecimento, mas apenas a vaidade de possuí-lo. Esse é o outro e fundamental erro: o atalho. Sem luta interna, sem uma guerra consigo (física e psíquica), o conhecimento é vazio. O saber nasce dessa luta e não do conhecimento em si. O caminho é o conhecimento. A luta por saber é o saber. Essa é outra lição do Gênesis. Nesse caso, não se trata de substituir o prazer no longo prazo pelo prazer imediato. Adão e Eva perderam o Paraíso não pelo gosto do fruto ou pelo prazer infrator. Não foi uma dúvida entre ter prazer agora ou cumprir uma ordem em longo prazo. Nossos pais primordiais desejaram o longo prazo irrealizável ao errarem. Eles comeram para ser como Deus, apostaram em uma falsa premissa. Sua busca pelo discernimento absoluto apenas trouxe à tona sua falta de capacidade para isso. Nesse caso, o pecado é um equívoco de outra forma de idolatria orgulhosa: julgar-se capaz de mais do que se pode. O pecado é um erro de avaliação. O pecado é filho da vaidade. Ficamos com um caso curioso. Ao desejarem conhecimento imediato e pronto, Adão e Eva demonstraram que não tinham conhecimento algum. A ignorância, em si, não é um erro, mas o orgulho dela e a permanência nela, sim. O episódio de Adão e Eva na Torá traz mais uma revelação. Já identificamos a justiça que pune e a misericórdia que ampara. O castigo pela desobediência é duro: expulsão do Paraíso. Adão teria de trabalhar com dificuldade e seu suor seria o custo da sua sobrevivência. Eva teve duplo castigo: parir filhos na dor e ser submissa ao marido. Faltam milênios para um pensamento feminista despontar na linha do horizonte. Dor, trabalho, perda do Paraíso: enormes punições pelo erro. Mas… logo após essas pragas sobre Adão e Eva e toda a humanidade, vem a misericórdia. Um versículo simples, isolado, que parece reverter todo o jogo até aqui (Gênesis 3:21). Deus fez túnicas de pele e vestiu homem e mulher. Foram expulsos de casa, mas com itens básicos de guarda-roupa. A justiça foi feita e a misericórdia, atendida. Começa a história humana. Principiamos com a queda. O pecado nos humanizou. O preço da humanização é alto. Fora do Paraíso, Adão e Eva geram filhos.
É interessante notar que nunca existiu uma família completa no Paraíso. Adão e Eva foram perfeitamente felizes sem filhos. Só foram férteis após o pecado. A dor da concepção faz parte do castigo da mulher. A ordem de crescer e multiplicar tinha sido dada, mas só será realizada no lado externo do Jardim das Delícias. Caim nasce aqui, neste mundo, no famoso Vale de Lágrimas. O agricultor Caim logo teria um irmão, o pastor Abel. Formou-se a primeira família humana. O primeiro homicídio nasce de uma disputa de afeto. Caim ofereceu um fruto da terra a Deus. Abel fez o mesmo com o primogênito do seu rebanho. A Bíblia não diz textualmente, mas a tradição judaica fala que Caim ofereceu produtos com descuido e Abel trouxe, de coração limpo, o melhor do rebanho. Em todo caso, Deus olhou para o sacrifício de Abel e não para o de Caim. O ressentimento instalou-se no coração do primeiro filho. Em uma época de comunicação mais livre entre Deus e os homens, o Altíssimo vê a tristeza de Caim e o questiona. Há uma pequena passagem muito significativa no capítulo 4 do Gênesis. Deus diz a Caim que o bem o faz andar de cabeça erguida e o mal faz o pecado espreitar à porta: “A ti vai seu desejo, mas tu deves dominá-lo” (Gênesis 4:7). Tu deves dominar teu desejo, é tradição mais corrente nas Bíblias, especialmente as cristãs. Se ficarmos mais fieis ao hebraico da Torá, o verbo não é dever, mas poder. No texto hebraico, não é ressaltado um dever exatamente, mas uma capacidade. É uma tradição forte na Bíblia: o mal espreita e o homem tem capacidade de agir bem e recusar o pecado. Se pecar, deve arrepender-se e Deus o perdoará. Se a tentação e a força do mal fossem maiores do que nossa capacidade, não seria pecado de fato, pois não haveria escolha nem liberdade. No Novo Testamento, na carta aos Romanos que abre a coleção de textos atribuídos a Paulo, há uma passagem que dialoga com essa tradição. O homem de Tarso diz que onde aumenta o pecado, a graça transborda (Romanos 5:20). Uma das possibilidades de interpretação dessa passagem é que sempre existe a fortaleza dada pelo Espírito para que cada um possa resistir aos erros. Não há tentação maior do que nossa vontade e, assim, todo pecado é uma escolha, muito clara, pelo Mal, escolha consciente e deliberada. O direito e o costume contemporâneos introduziram reflexões que, em alguns casos, justifica ou sociologiza o erro. Por causa de um desvio mental, por causa de sua origem social, em função de uma insanidade temporária ou um traço específico, o criminoso torna-se menos culpado ou até digno de uma absolvição. A tradição bíblica é distinta.
Por um lado, o erro é escolha de cada um, consciente e deliberada. Por outro lado, reconhecendo o erro e se arrependendo dele, o perdão pode existir. Todos são imputáveis na Bíblia, mas nem todos são perdoados. Caim matou o irmão e passou a errar pela Terra com um sinal colocado por Deus, para que não seja morto e vague pelo mundo. Reflita, estimado leitor: estamos falando da primeira família humana, aquela que mais próxima esteve de Deus e teve um começo tão feliz. Nessa família não existia sogro ou sogra, genro ou nora, nem avós distintos para separar as festas. Adão e Eva não tiveram infância. A primeira mãe ouviu o demônio, o primeiro pai a seguiu, o filho mais velho é assassino e o mais novo está morto. No próximo Natal ou na Festa de Hanucá, ao ver pequenos problemas domésticos, alguma ironia velada ou chantagem emocional, seja um pouco mais generoso com a mesa familiar. Se os filhos não se entenderem, se houver intrigas entre cunhados, se o marido ou a mulher estiverem de mau humor, reflitam: estamos melhor do que Adão e Eva…
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