quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

CÉREBRO, HÁBITO, APRENDIZADO, NEUROPLASTICIDAE E MUNDO DIGITAL

 

    O consumo recreativo do digital pela nova geração, sob todas as suas formas, seja por intermédio de um smartphone, tablets ou uma televisão,  é absolutamente estratosférico. A partir dos 2 anos de idade, as crianças dos países ocidentais acumulam diariamente quase 50 minutos diante da tela. Entre 2 e 8 anos, esse tempo sobe para 2h45min. Entre 8 e 12 anos, os jovens passam aproximadamente 4h45min diante das telas. Entre 13 e 18 anos, eles chegam perto de 7h15min. Parece absurdo ou fantasioso, mas não é, são dados oriundos de pesquisas científicas. Ao completar  um ano de idade, o tempo consumido totaliza mais de 1.000 horas para um aluno da pré-escola (1,4 mês), 1.700 horas para um estudante do nível fundamental (2,4 meses) e 2.650 horas para alunos do ensino médio (3,7 meses). Expresso em fração do tempo diário de vigília, isso resulta, respectivamente, em 20%, 32%, 45%. Ao longo dos 18 primeiros anos de vida, eles representam o equivalente a quase 30 anos letivos, ou, 15 anos de um emprego em tempo integral. Sem se alarmar, muitos especialistas midiáticos parecem aplaudir a situação. Psiquiatras, universitários, pediatras, sociólogos, consultores, jornalistas, ... multiplicam suas declarações indulgentes para tranquilizar os pais e a sociedade “entorpecidamente”crédula. Para eles, “os profissionais”, a humanidade estaria em uma nova era, e o mundo pertenceria agora aos assim chamados digital natives (nascidos nos tempos digitais, ou “nativos digitais”). Até mesmo o cérebro dos membros dessa geração pós-digital teria se modificado – para melhor, é claro. Ele teria, afirmam, se tornado mais rápido, mais reativo, mais apto à multiplicidade simultânea de tarefas, mais competente para sintetizar o imenso fluxo de informações, mais adaptado ao trabalho colaborativo. Essas evoluções acabariam por representar uma possibilidade extraordinária para a escola. Elas ofereceriam uma oportunidade absolutamente única de refundar o ensino, estimular a motivação dos alunos, fecundar sua criatividade, eliminar o fracasso escolar e derrubar o bunker das desigualdades sociais. Não é novidade ouvir a seguinte afirmação (deveras estúpida): eles já nasceram sabendo. Surge, então, a pergunta que não quer calar: sabendo o que?

    Infelizmente, esse entusiasmo generalizado está longe de ser unânime. Inúmeros especialistas denunciam a influência profundamente negativa dos dispositivos digitais atuais sobre o desenvolvimento. Todas as dimensões estariam sendo afetadas, desde o somático (obesidade e a maturação cardiovascular), até o emocional (agressividade e a ansiedade), passando pelo cognitivo (linguagem e a concentração); tantos danos, seguramente, não deixariam ileso o desempenho escolar. Por sinal, a respeito deste último, tudo indica que as práticas digitais realizadas em aula, para fins de instrução, também não seriam particularmente benéficas, como parece apontar a maioria dos estudos de impacto disponíveis, dentre os quais as famosas avaliações internacionais PISA - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. O diretor desse programa explicava recentemente, a respeito do processo de digitalização do ensino: “Se algum efeito tiver, é o de piorar as coisas”. Em sintonia com esses receios, alguns indivíduos e atores institucionais escolheram a prudência. Na Inglaterra, por exemplo, os diretores dos principais colégios ameaçaram enviar a polícia e os serviços sociais aos lares em que os pais deixam seus filhos jogar videogames violentos. Em Taiwan, onde os alunos apresentam um dos melhores desempenhos do planeta, uma lei prevê pesadas multas para os pais que expõem seus filhos com menos de 24 meses a qualquer aplicativo digital e que não limitam suficientemente o tempo de utilização pelos jovens de 2 a 18 anos de idade (o uso não deve ultrapassar 30 minutos consecutivos). Na China, as autoridades tomaram medidas drásticas afim de regulamentar o consumo de videogames entre os menores de idade, alegando especialmente que isso afetaria de forma negativa o bom desempenho escolar. Naquele país, crianças e adolescentes não têm mais permissão para jogar durante o período normalmente dedicado ao sono (entre 22 e 8 horas) ou para ultrapassar 90 minutos de exposição diária em dias de semana (e 180 minutos nos fins de semana e durante as férias escolares). Nos Estados Unidos, inúmeros dirigentes ilustres de indústrias digitais, como era o caso de Steve Jobs, o mítico ex-diretor da Apple, parecem bastante preocupados em proteger sua prole das diversas “ferramentas digitais” que eles próprios comercializam. Tudo indica, como sugeriu o New York Times, que “um consenso sombrio em relação à utilização de telas digitais pelas crianças começa a surgir no Vale do Silício”. Um consenso aparentemente bem expressivo, capaz de extrapolar o ambiente doméstico e incentivar os geeks a inscrever seus filhos em escolas particulares caríssimas onde não se utilizam telas digitais (e aqui no Brasil andam discutindo a intensificação das tecnologia nas escolas em detrimento de professores melhor treinados e remunerados - puro mercantilismo e jogo político). Como explica Chris Anderson, ex editor da revista Wired e atual executivo de uma empresa de robótica: “Meus cinco filhos (de 6 a 17 anos) acusam a mim e a minha esposa de sermos fascistas e exageradamente preocupados com a tecnologia, e dizem que nenhum de seus amigos é submetido a essas regras. Isso acontece porque nós logo percebemos os perigos tecnológicos. Eu notei isso em mim. Não quero que o mesmo aconteça com meus filhos”. Para ele, “na escala entre doces e cocaína, isso está mais próximo da cocaína”.

    Esta é a conclusão do jornalista francês, doutor em sociologia, Guillaume Erner: “A moral da história é a seguinte: deem telas a seus filhos, os fabricantes de telas continuarão dando livros aos deles”. Então, em quem acreditar? No meio desse pandemônio contraditório, quem está blefando? Quem se engana? Onde está a verdade? Nutridos pelas telas digitais, estarão nossos filhos encarnando “a mais esperta geração de todas”, como garante Don Tapscott, consultor especialista sobre o impacto das novas tecnologias, ou seriam eles “a geração mais estúpida”, como alerta Mark Bauerlein, professor na Universidade de Emory? Mais globalmente, a atual “revolução digital” é, para nossos filhos, uma oportunidade ou um triste mecanismo de fabricar imbecis? Eis o ponto essencial deste breve texto: responder a estas perguntas. Visando a clareza, esta análise é organizada em três partes principais. A primeira avalia a substância do conceito fundador, ainda vivo, do nativo digital. A segunda análise é sobre a dupla natureza, qualitativa e quantitativa, do uso das tecnologias digitais pelas crianças e adolescentes. A terceira examina o impacto desse uso. É enorme a distância entre a realidade inquietante das pesquisas disponíveis e o conteúdo frequentemente tranquilizador (e mesmo entusiasta) dos discursos midiáticos. Esse hiato, porém, nada tem de surpreendente. Ele apenas remete a potência econômica das indústrias digitais recreativas. A cada ano, elas produzem bilhões de dólares de lucro. Ora, se a história recente ensinou alguma coisa, é exatamente que os prezados homens de negócios não renunciam facilmente a seus lucros, ainda que estes se multipliquem em detrimento da saúde dos consumidores. No centro dessa guerra travada pelo mercantilismo contra o bem comum se encontra um poderoso exército de cientistas complacentes, lobistas zelosos e mercadores profissionais da dúvida.

    Tabaco, remédio, alimentação, mudanças climáticas, amianto, chuvas ácidas, ..., é longa a lista de precedentes instrutivos. O grupelho aterrorizado dos obscurantistas reacionários já teria golpeado, por exemplo, com o fliperama, o micro-ondas, o rock, a tipografia ou a escrita (denunciada em sua época por Sócrates, por conta de seus possíveis efeitos sobre a memória). Infelizmente, por mais sedutoras que sejam, essas considerações não são menos imprecisas. O problema é que não existem estudos estabelecendo a nocividade do fliperama, do micro-ondas ou do rock. Ao mesmo tempo, existe um corpus sólido que salienta a influência positiva do livro e do domínio da escrita sobre o desenvolvimento. A partir daí, o que desqualifica uma hipótese não é a sua formulação inicial, mas sua avaliação final. Alguns temeram o rock. Mas nada corrobora esse medo: ponto final. Outros se inquietaram com a escrita. Uma vasta literatura científica invalida esse temor: que rufem os tambores. Pouco importam os medos histéricos do passado. Somente os dados atuais devem contar: o que dizem eles, de onde vêm, são confiáveis, são coerentes, quais são seus limites, ...? É respondendo a essas perguntas que será permitido a todos tomar decisões ponderadas, não fugindo à questão por meio do escapismo obsoleto do alarmismo, da culpa ou dos pânicos morais.

    Enfim, está fora de questão rejeitar “O” mundo digital em seu conjunto e reivindicar, sem nuances, o retorno ao telégrafo a fio, à calculadora de Pascal ou aos rádios a válvulas. Este texto não é tecnófobo. Em diversos campos – associados, por exemplo, à saúde, às telecomunicações, ao transporte aéreo, à produção agrícola ou à atividade industrial – o aporte extremamente fecundo do mundo digital não pode ser contestado. Quem pode se queixar de ver robôs efetuarem nos campos, nas minas ou nas fábricas todas as tarefas brutais, repetitivas e destruidoras que até então eram realizadas por homens e mulheres ao custo de sua saúde? Quem pode negar o enorme impacto que as ferramentas de cálculos, de simulação, de armazenamento e de compartilhamento de dados tiveram sobre a pesquisa científica e médica? Quem pode questionar o interesse dos softwares para tratamento de texto, de gestão, de desenho mecânico e industrial? Quem ousaria afirmar que a existência de recursos pedagógicos e documentais competentes, livremente acessíveis a todos, não representa um benefício? Obviamente, ninguém! Dito isso, esses incontestáveis benefícios não devem ocultar a existência de avanços tecnológicos muito mais prejudiciais, especialmente no campo dos consumos recreativos. Ainda mais que esses consumos concentram a quase totalidade dos usos de tecnologias digitais pelas jovens gerações. Dito de outra forma, quando o arsenal de telas disponíveis hoje em dia (tablets, computadores, videogames, smartphones, ...) é disponibilizado para as crianças e adolescentes, suas práticas não se orientam no sentido de utilizações mais nitidamente positivas, mas no sentido de uma farra de utilizações recreativas das quais a pesquisa revela irrevogavelmente um caráter nocivo. Uma coisa é certa: se as crianças e os adolescentes concentrassem suas práticas naquilo que o digital oferece de mais positivo, o presente texto, estudos e os respectivos alertas não teriam razão alguma de existir.

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