quinta-feira, 26 de junho de 2025

TRANSTORNO BIPOLAR - um olhar sobre a questão

         BIPOLARIDADE – EXISTE ISSO?

by Heitor Jorge Lau

            A noção da Bipolaridade, um transtorno mental caracterizado por flutuações extremas de humor entre depressão e mania ou hipomania, é amplamente aceita e diagnosticada na psiquiatria contemporânea. No entanto, é possível explorar múltiplos ângulos que questionam a sua existência como uma entidade discreta e imutável, propondo alternativas e nuances que desafiam a narrativa dominante. Um ângulo de análise é a historicidade e a evolução dos diagnósticos psiquiátricos. Historicamente, as manifestações que hoje chamamos de transtorno bipolar foram descritas de diversas formas, como Melancolia com Mania por Hipócrates, ou Loucura Circular por Falret. A consolidação do termo Transtorno Bipolar e seus subtipos é relativamente recente, fruto de um processo contínuo de categorização e refinamento nos manuais diagnósticos, como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Essa evolução levanta a questão de até que ponto a Bipolaridade é uma condição intrínseca da mente humana ou uma construção social e cultural, moldada pelas lentes e convenções de cada época. A psiquiatria, como qualquer campo do conhecimento, não é estática, e seus diagnósticos refletem as compreensões científicas e sociais prevalentes e que podem mudar.

            Outra perspectiva questionadora reside na dimensionalidade versus categorização. A psiquiatria atual tende a categorizar as experiências humanas em caixas diagnósticas. Contudo, a experiência humana é, em sua essência, um continuum. As flutuações de humor, energia e impulsividade existem em diferentes graus dentre a sociedade. Onde traçamos a linha entre o que é uma variação normal do temperamento e o que se torna um transtorno? A ideia de uma existência da Bipolaridade pode ser obscurecida pela dificuldade em definir limites precisos. Talvez as pessoas diagnosticadas com Bipolaridade estejam simplesmente em uma extremidade de um espectro de variações de humor, e o distúrbio seja mais uma questão de grau e impacto funcional do que de uma entidade patológica distinta. Essa visão dimensional sugere que não há uma ruptura clara entre o que é normal e o que é patológico, mas sim uma gradação de experiências.

            A influência da indústria farmacêutica também oferece um ângulo crítico. O “boom” da psicofarmacologia nas últimas décadas levou ao desenvolvimento e marketing de medicamentos específicos para o transtorno bipolar. Isso levanta a questão se a ênfase no diagnóstico e na delimitação da Bipolaridade não estaria, em parte, impulsionada por interesses comerciais. A descoberta de novos transtornos ou a expansão dos critérios diagnósticos pode, inadvertidamente, levar a um aumento no número de diagnósticos, o que, por sua vez, impulsiona o consumo de medicamentos. Não se trata de negar o sofrimento das pessoas, mas de questionar se a maneira como as condições são enquadradas não é influenciada por fatores externos à pura observação clínica.

            A comorbidade e sobreposição de sintomas é mais um ponto de reflexão. É comum que indivíduos diagnosticados com Bipolaridade também apresentem características de outros transtornos, como transtorno de ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ou transtorno de personalidade. Essa sobreposição complexifica a ideia de uma Bipolaridade como uma entidade diagnóstica pura. É possível que as oscilações de humor sejam um sintoma transdiagnóstico, ou seja, uma manifestação comum a várias condições, em vez de uma característica definidora de um transtorno específico? Talvez as etiquetas diagnósticas sirvam mais para organizar os sintomas do que para descrever uma patologia unitária e subjacente.

            Além disso, a experiência subjetiva e cultural das flutuações de humor varia enormemente. Em algumas culturas, estados de euforia ou pensamentos acelerados podem ser interpretados como inspiração divina ou êxtase espiritual, e não necessariamente como patológicos. A medicalização de certas experiências humanas, que em outros contextos poderiam ser vistas como parte da diversidade da condição humana, é um ponto de crítica. A mania em um contexto ocidental pode ser um estado alterado de consciência em outro contexto. Essa perspectiva questiona a universalidade do conceito de Bipolaridade e sugere que a sua existência é, em parte, uma construção cultural ocidental que patologiza certas formas de ser e sentir.

            Outra alternativa a considerar é a perspectiva psicodinâmica e de trauma. Muitos teóricos e terapeutas propõem que as oscilações de humor extremas podem ser entendidas como mecanismos de defesa ou respostas a traumas complexos e experiências adversas na infância. De uma perspectiva psicodinâmica, a mania poderia ser uma fuga da dor emocional, uma grandiosidade defensiva contra sentimentos de inadequação, e a depressão, um colapso diante da realidade de feridas não processadas. Nesse sentido, a Bipolaridade não existiria como uma doença cerebral primária, mas como uma manifestação de processos psicológicos profundos e não resolvidos. A cura, então, não viria da estabilização química, mas da elaboração e integração dessas experiências traumáticas e dos conflitos internos.

            Finalmente, a neurodiversidade oferece um ângulo radical. Inspirada pelo movimento autista, essa perspectiva argumenta que certas condições neurobiológicas, que são atualmente classificadas como transtornos, deveriam ser vistas como variações naturais da cognição e do temperamento humano. Se aplicada à Bipolaridade, isso implicaria que as pessoas que experimentam essas intensas flutuações de humor não estão doentes, mas simplesmente possuem um tipo diferente de funcionamento neurobiológico. Embora isso não negue o sofrimento associado, muda o foco da cura para a acomodação e aceitação, promovendo um ambiente social que valorize e suporte a diversidade de experiências humanas.

            Em síntese, embora a Bipolaridade seja um diagnóstico estabelecido e útil para muitos no contexto clínico atual, uma análise aprofundada revela que a sua existência pode ser interpretada de maneiras multifacetadas. De sua construção histórica e cultural à sua relação com a indústria farmacêutica, passando pela dimensionalidade da experiência humana, a sobreposição de sintomas, as interpretações culturais e perspectivas psicodinâmicas e da neurodiversidade, há ângulos que desafiam a sua realidade como uma entidade fixa e universal. Essas alternativas não buscam invalidar a dor ou a experiência daqueles que recebem o diagnóstico, mas sim expandir a compreensão sobre a mente humana e as formas como categorizamos e respondemos ao sofrimento psíquico. A discussão sobre a inexistência da Bipolaridade, portanto, não é um mero exercício de negação, mas um convite à reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades do nosso conhecimento em saúde mental.

 

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